quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Exclusividade dos médicos

pelo Dr. Jaime Teixeira Mendes

Em nenhum país desenvolvido a promiscuidade entre sectores público e privado foi e continua a ser tão grande como em Portugal.

É curioso que já em 1939, numa conferência proferida na Liga de Medicina Preventiva e Social, o representante da Fundação Rockefeller dizia: “Repito o que já atrás disse, e que é de importância, o pessoal de serviço de saúde pública deve trabalhar em “full-time”, deve entender-se que o funcionário não pode ter outro emprego nem ocupação remunerados, tanto oficial como particular (…). Este sistema (…) já foi reconhecido também em Portugal pelo actual Governo (…)”. (1)

Esta fundação, que se propunha fazer a formação de técnicos portugueses na área de saúde pública nos Estados Unidos e Canadá, exigia no acordo que os bolseiros trabalhassem em exclusividade. Isto há mais de 70 anos!!!!

Nessa época e durante muitos mais anos, nos hospitais e noutros serviços de saúde, os médicos recebiam uma “gratificação” pelo trabalho matinal e o dinheiro para o seu sustento e da família era realizado na chamada clínica livre ou “pulso livre”, segundo a expressão célebre do Ministro do Interior Trigo de Negreiros, que à época tutelava a Saúde.

A filosofia durante a ditadura era esta, a mesma do século XIX dos países industrializados da Europa e das Américas, ou seja, os médicos aprendiam nos hospitais dos indigentes e por isso praticavam um trabalho benemérito sempre com a esperança de na clínica livre auferirem bons proventos.

Esta mentalidade, apesar das transformações ocorridas após o 25 de Abril (Serviço Nacional de Saúde, etc….), ainda subsiste nalguns responsáveis pela tutela.

Quando regressei da Suíça, em plena fase revolucionária, ainda tive a ilusão que a separação entre o público e o privado fosse efectiva.
Pura ilusão. O lobby dos chamados barões da medicina estava bem instalado. Os mais conservadores nem queriam ouvir falar na medicina estatizada ou organizada e os mais progressistas diziam que assim se iria provocar a fuga dos melhores médicos para o privado.

Medo atávico dos responsáveis pela Saúde em Portugal. Noutros países não existe este medo da saída de médicos para as clínicas privadas. A história da Medicina na Europa está cheia de exemplos de profissionais prestigiados que ao terem de escolher, optaram pelo exercício da sua arte em clínicas privadas, o que nunca pôs em causa a continuação dos serviços públicos onde trabalhavam.

Ainda hoje esta situação mantém-se para gáudio e espanto até dos nossos vizinhos. Numa entrevista ao El País, um dos muitos médicos espanhóis a trabalhar em Portugal manifestava os seus elogios ao SNS, afirmando que este oferecia formação superior e ainda permitia trabalhar no público e no privado.

Os sucessivos governos democráticos também não ajudaram, nem ajudam, à separação público/privado e à opção pela exclusividade no SNS por parte dos médicos, ao pagarem salários baixíssimos, por um lado, e ao não oferecerem condições para que os diversos centros se desenvolvam como verdadeiros marcos de referência a nível nacional, por outro.

A última declaração da Srª Ministra da Saúde, equacionando a hipótese de todos os médicos em trabalho no SNS adoptarem o regime de exclusividade, só pode ser considerada demagógica, porque vem ao arrepio de todas as propostas dos seus antecessores Luís Felipe Pereira e Correia de Campos. Como se sabe, estes seguiram uma política neoliberal, imposta pela Europa, numa cegueira de privatizações. Como tem de haver sempre uma particularidade lusitana, o neoliberalismo apresenta-se com o toque anárquico permitindo o nacional porreirismo.

Se não, vejamos:
- Facilitou-se e incitou-se à reforma de médicos com idades inferiores a 60 anos, para depois os contratar nos mesmos hospitais, através de empresas de prestação de serviços, a um preço/hora três vezes superior ao que recebiam antes da reforma (um médico a trabalhar no hospital recebe entre 12 a 19 euros/hora, consoante o regime de 35 horas ou de 42 horas; o mesmo, contratado em prestação de serviços, recebe entre 40 a 60 euros /hora).
- Os médicos em formação (internos da especialidade) estavam há uns anos com horários de 42 horas/semanais. Em exclusividade passaram a estar com horários de 35 horas, sendo-lhes ainda permitido trabalhar noutras instituições, nomeadamente trabalho mercenário noutros locais à exclusão do seu.
- Estabelecem-se horários para os médicos hospitalares de 28, 35, 40 e 42 horas semanais.
- Permite-se generosamente as licenças sem vencimento para se poder fazer uma experienciazinha só no privado, com a retaguarda assegurada no público.
- Suspendem-se as carreiras médicas e congelam-se os salários.

Acabar de uma vez com a promiscuidade entre o público e o privado é uma medida de interesse nacional e que ficava bem a um governo socialista.

Porquê esperar mais? Quais são os medos? Fuga de médicos para o privado e, consequentemente, falta de médicos, são argumentos falaciosos para justificarem a falta de medidas.

Há falta de médicos em Portugal?
Questão shakespeariana que os nossos governantes não resolvem e que as nossas estatísticas não dão resposta.

Os dados existentes são contraditórios e pouco fiáveis.
Para a OMS, em 2004, Portugal dispunha de 340 médicos/100.000 habitantes, muito próximo da média europeia. (2)
Os dados fornecidos pela Ordem dos Médicos não são fiáveis, porque nas últimas eleições para a Ordem detectaram-se, há primeira vista, inúmeros médicos já falecidos que constavam das listas eleitorais.

Um levantamento sério carece de ser realizado e deve incluir não só o número como a distribuição regional e por especialidades dos médicos.

Deve ter em conta a resposta às seguintes perguntas:
- Todos os licenciados em Medicina vão para o SNS? Quantos vão para a indústria farmacêutica, quantos vão para a investigação, quantos desistem de exercer a profissão?
- Dos licenciados no estrangeiro, quantos irão regressar?
- Dos médicos inscritos na Ordem (inscrição obrigatória), quantos exercem efectivamente medicina no sector público ou/e no sector privado?
- Com os meios de comunicação hoje existentes (Telemedicina, Cirurgia e Anestesia Robótica, etc…. ) será que haverá falta de profissionais?
- Será que muitas das tarefas hoje realizadas por médicos não poderão ser realizadas por outros profissionais?

“Centenas de médicos pedem licença sem vencimento. O problema não é tanto a quantidade, mas a qualidade dos médicos que saem do público para o privado” (3).
“Médicos fogem às centenas do SNS” (4).
Estas e outras frases, transmitidas à exaustão pelos media, não correspondem à verdade.

Calcula-se que em Portugal haja 24 mil médicos que exercem a sua profissão na esfera do SNS e foram cerca de 800 a abandoná-lo. Em linguagem castrense direi que os que abandonaram os serviços públicos foram alguns coronéis e capitães; os generais ficaram, bem como a maioria dos alferes e a totalidade dos soldados e como todos sabemos sem estes não se ganham guerras.

Mas se algumas medidas não forem tomadas, a ilusão de um Eldorado fácil e a perspectiva de novos desafios pode originar uma sangria maior de quadros dos hospitais públicos com a destruição de alguns serviços.

Assim, é necessário:

- A aprovação rápida das carreiras médicas, com aumento salarial e com diferenciação técnico profissional por meio de provas isentas e sem compadrios.
- A formação de internos, com contratos em regime de 42 horas semanais e em exclusividade, em centros idóneos de preferência universitários. Esta idoneidade deve ser atribuída, anualmente, pelos colégios de especialidade da Ordem dos Médicos, sem interferência de órgãos dependentes do Ministério da Saúde.
- O estabelecimento no SNS de contratos colectivos de trabalho (os incentivos são outro logro em voga) com um único horário semanal.
- A existência de uma Associação profissional que exija qualidade aos centros de formação e competência aos formandos em fins de especialidade.

Antes de abrirmos mais faculdades de Medicina, construirmos mais hospitais ou centros de saúde - ou seja antes de decidir - é preciso conhecer as realidades e necessidades do país, encarar os desafios que se irão pôr aos novos médicos no século XXI e depois planear, planear, planear e ter a coragem de tomar medidas, mesmo que sejam impopulares.
Jaime Teixeira Mendes
Chefe de Serviço de Cirurgia Pediátrica
Membro da Direcção do Colégio da Especialidade de Cirurgia Pediátrica da OM
Membro da MAOM


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Notas
1. Algumas Considerações sobre saúde pública. Conferência realizada pelo sr. Dr. Roll B Hill, ilustre delegado em Portugal da Rockefeller Foundation, no dia 4 de Março de 1939, promovida pela Liga Portuguesa de Profilaxia Social. Pg. 9, separata VIDA E SAÚDE, órgão cultural da Assistência aos Tuberculosos do Norte de Portugal, 4/3/1939!

2. WHO, European HFA Database, 2007

3. Público 24/4/07

4. Diário Noticias 07/04/08

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